Segue meu artigo apresentado no
"XI
Seminário de Literatura, História e Memória" e "II Congresso
Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano" realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), nos dias 27, 28 e 29 de novembro de 2013. O tema escolhido para a edição 2013 foi "Confluências entre literatura, cultura e outros campos do saber".
Estratégias de Referenciação em Textos Multimodais
Elizete Inês Paludo (Unioeste)
RESUMO: Um ensino de qualidade é de
fundamental importância para a sociedade que dele necessita para melhor
sobreviver. Na
atualidade, momento no qual a globalização lidera, não há como sobreviver sem
ter o domínio de algumas competências básicas ligadas à compreensão da
estrutura e dos usos sociais da língua. Todavia, o pouco êxito dos estudantes
brasileiros em avaliações de aprendizagem, ou os eventuais índices de evasão e
retenção, são reveladores de que a educação precisa ser tratada com maior
seriedade e compromisso. Embora vários autores tenham abordado temáticas a
esse respeito, ainda são necessários avanços nas práticas educacionais do
cenário brasileiro. O estudo proposto busca contribuir no sentido de levar o
aluno à apreensão dos sentidos veiculados pelos textos,
com posicionamento crítico e maior domínio dos recursos que a língua dispõe.
Parte-se da premissa de que o arcabouço teórico da Linguística Textual é válido
não somente para a compreensão de textos escritos, mas também para que se possa
entender a relação referencial em textos muldimodais. Para dar sustentação a esta proposta, o respaldo teórico é
buscado em autores como Bakhtin (2003), Koch (2006,
2008, 2009a, 2009b 2010, 2011), Marcuschi (2006, 2007, 2012) e outros
estudiosos no assunto. A referenciação é assumida como atividade discursiva
realizada negociadamente na construção de objetos-de-discurso. Torna-se viável,
assim, investir na compreensão da articulação dos mecanismos da língua. A título de demonstração, o corpus constitui-se de uma tira cômica construída
com apoio em elementos verbais escritos e visuais.
Palavras-chave: Referenciação; Multimodalidade; Ensino.
ABSTRACT: A quality
education is fundamental to society that it needs to better survive. At the
present moment in which globalization leads, there is no way to survive without
having the domain of some basic skills related to the understanding of the
structure and the social uses of language. However, the limited success of
Brazilian students in learning assessments, or any dropout rates and retention,
are revealing that education still needs to be treated with utmost seriousness
and commitment. Although several authors have addressed issues about it, you
realize the need for advancements in the educational practices of the Brazilian
scenario. The proposed study seeks to contribute in bringing the student to learn the sense conveyed by the texts,
with critical
positioning and greater mastery of the resources that language has. It starts
with the premise that the theoretical
framework of Textual Linguistics is valid not only for the
understanding of written texts, but also so that we can understand the relationship referential texts muldimodais. To give support to this proposal, the theoretical support is sought on authors such
as Bakhtin (2003), Koch (2006, 2008,
2009a, 2009b, 2010, 2011), Marcuschi (2006, 2007, 2012) and other scholars on the subject. Referral is assumed as discursive
activity performed negociadamente in building objects-to-speech.
Becomes feasible, thus investing in the joint understanding of the mechanisms
of language. By way
of demonstration,
the corpus is made up of a comic strip built with support verbal elements
in written and
visual.
Keywords: Referencing; Multimodality; Education.
1 Introdução
No mundo globalizado da
atualidade, as comunicações se dão por formas rápidas e intensas, pois os meios
de comunicação propiciam maior interação entre os povos. Com a revolução
tecnológica, os hábitos humanos são alterados e as necessidades comunicativas evoluem junto aos modos de
persuasão. Em termos de estudos linguísticos, o que se verifica é a necessidade
de um novo enfoque para o ensino do texto escrito, que não dá conta de abarcar
a totalidade dos usos da língua e de seus fenômenos recorrentes nas práticas
sociais ao serem demarcados pela estruturação de textos multimodalizados, constituídos de multisemioses.
Nesse âmbito de mudanças, o ensino de língua portuguesa nas escolas revela-se
como uma das áreas que mais
sofreu influência das tecnologias. O apelo visual influencia a estrutura
textual em que apenas uma representação semiótica torna-se insuficiente para
atender às necessidades sociais. Entre elas, a transmissão de mais informações
em enunciados de menor tamanho e a exigência de maior esforço para a captação das intenções de produtores textuais distintos.
O ser humano, assim, necessita da mobilização de vários conhecimentos que vão
da linguagem verbal presente na superfície textual às linguagens constituídas
de múltiplos códigos comunicativos (expressão facial, sinais, sons, cores etc.)
para que possa compreender as mensagens veiculadas, sendo-lhe inviável a
compreensão global sem que investigue também os elementos não verbais presentes
na constituição da tessitura textual.
Consta
nas Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa (DCE/PARANÁ, p. 68) como conteúdo estruturante “o
discurso como prática social”. O referido documento evidencia a necessidade de
fundamentar práticas de ensino que desenvolvam a compreensão do funcionamento
dos textos para além do senso comum. Nesse viés, o ensino da língua requer
investimento contínuo em estratégias vinculadas à formação de leitores
proficientes, no sentido de rever paradigmas do ensino, em maioria voltados a
aspectos da modalidade verbal.
Quando se trata do texto
multimodal, vários fatores são acionados para que a leitura empreendida capture
os sentidos possíveis. É nessa direção que o estudo proposto aponta, na
tentativa de proporcionar o desenvolvimento de práticas pedagógicas mais
eficazes, capazes de impulsionar o processo de leitura a partir da análise do
modo como os componentes da língua são representados e relacionados na escrita.
Sendo assim, importa investigar como os objetos-de-discurso, indiciados por pistas linguísticas e
completados por inferências variadas, constroem os sentidos
veiculados pelos textos e também como se comportam esses elementos referenciais em gêneros multimodalizados, como: charge, tira
cômica, propaganda e outros. Contudo, a título de delimitação, o foco deste
estudo consiste em analisar a tira cômica (texto curto, com desfecho
inesperado, como em uma piada). Causa interesse a soma de elementos
multimodalizados presentes nessa trama textual, articulados de forma a fazer
com que o interlocutor considere as intenções do falante quando acionadas no
jogo discursivo.
Se sentidos são construídos e relações são estabelecidas nas tiras
cômicas por meio dos
conteúdos ou discursos veiculados, são merecedoras de atenção. Importam os
significados por elas gerados a partir de linguagem verbalizada e arranjos
visuais (cores, imagens, tipos, tamanhos de fontes, formatos, expressões faciais
etc.) que propagam sentidos ao mesmo tempo em que expõem de algum modo a autoria
de quem os representa. Ao demarcarem determinadas relações, configuram o
processo de referenciação na elaboração de textos. Nesse caso, a construção de
significados não se dá por mera representação das coisas, mas por cadeias associativas
de elementos intra e extralinguísticos que compõem a significação. Por serem
assim constituídas, exigem do leitor a mobilização de conhecimentos que possam
permitir a compreensão. Um trabalho educativo responsivo, que preza pelo
desenvolvimento de habilidades de senso crítico e argumentatividade, deve levar
em conta tais fatores.
Essas premissas respaldam-se em ideias de Bakhtin (2003), Koch (2006, 2008, 2009a, 2009b 2010, 2011),
Marcuschi (2006, 2007, 2012) e outros pesquisadores no assunto.
2 A produção do
sentido
Estudos realizados acerca do insondável mistério das
comunicações dão conta de que a aptidão comunicativa decorre das necessidades
de interação na busca da sobrevivência. No entanto, as ações diárias
significativas da vida do ser humano são dotadas de complexidade. Elas
perpassam o tempo e ganham sentido pelo funcionamento da linguagem que
possibilita atribuir sentido ao mundo, influenciar ou ser influenciado. As
habilidades de lidar com os processos de leitura e escrita permitem a conexão
entre os conhecimentos de outros tempos e espaços. Concebe-se, assim, que a
língua veicula os sentidos construídos em cada cultura às pessoas. As palavras,
ao serem constituídas por marcas ideológicas diversas, passam a representar
imagens cada vez mais heterogêneas em forma e em conteúdo de modo a
possibilitar as relações plurissignificativas no e a partir do texto, que se
projeta como um produto para além da materialidade linguística. Na recusa de
deixar-se conduzir pelas mensagens contemporâneas que permeiam os processos
enunciativos de organização do poder, diferentes habilidades de linguagem
passaram a ser necessárias, entre elas, a atribuição de sentido a mensagens
oriundas de múltiplas fontes de linguagens.
Dessa forma, ao compreender que as ações rotineiras de fala
ou escrita interferem de modo inconsciente nas formas de pensar e agir
socialmente, Marcuschi (2012, p. 233) pede maior esforço do leitor para a
“identificação de informações com base em atividades inferenciais”. Bakhtin
(2003, p. 317) atenta para os valores sociais que costumam ter efeito sobre a
língua nas construções linguísticas que, ao permearem ações sociais,
impregnadas de fenômenos multimodais em representações distintas, não podem ser
entendidos “em termos puramente linguísticos”. Para Koch e Elias (2010, p. 21),
considerar as alterações contínuas nos modos de conceber o conhecimento
“implica aceitar uma pluralidade de leituras e de sentidos em relação a um
mesmo texto”. Pressupõe também refletir sobre as ações realizadas com o uso de
uma linguagem eficiente e sua função como mediadora das práticas
sociais.
Essa preocupação
faz parte do interesse de estudos da Linguística Textual que, segundo Koch (2011, p. 23), por muito tempo esteve ligada à
análise das relações interfrásicas. No caso da referenciação, a análise era
pautada na organização de termos ou frases, sem aprofundar o estudo dos
sentidos gerados a partir da relação construída. Hoje, segundo Koch (2006, p. 264), a análise do fenômeno referencial anafórico leva em conta a retomada (ou não) de referentes. “No primeiro caso, pode
haver simplesmente a correferência entre a expressão anafórica e seu
antecedente textual, ou ocorrer a
recategorização deste”. As anáforas com retomada de antecedentes textuais
ocorrem por elipse, repetição e pronome. E a classificação proposta é: 1 anáforas
correferenciais sem categorização: 1.1 por repetição total ou parcial; 1.2 por
sinonímia ou parassinonímia; 2 anáforas correferenciais recategorizadoras: 2.1
hiperonímia; 2.2 retomada por termo genérico; 2.3 retomada por descrições
nominais; 3 anáforas não-correferenciais: 3.1
indiretas; 3.1.1 associativas; 3.2 rotuladoras.
De acordo com
Ilari (2001, p. 105),
hoje o estudo da referenciação trata de “um funcionamento linguístico do qual
sabemos menos do que gostaríamos”, o que torna o estudo um grande desafio a todo estudioso que
procura compreender os fenômenos linguísticos. É como diz Ramos (2012, p. 743),
“este século tem inserido no escopo da Linguística Textual diferentes desafios
a serem enfrentados teoricamente”. São noções que desafiam à ampliação de
conceitos e revisão de análises instituídas como adequadas aos textos. Levam a
considerar também que a significação dos termos da língua não se restringe aos
textos em si, mas a componentes vinculados a eles, aos objetos que fazem
remissão e a outros componentes linguísticos inferidos, não ficando limitados a
observações apoiadas apenas no nível frasal.
Para Marcuschi (2007, p. 32), são indagações que movem
investigações dos fenômenos linguísticos na busca de compreender, entre outros
aspectos, “como se constitui e caracteriza nossa inserção cognitiva no mundo
mediada pela linguagem”. No entanto, sobre como as informações são processadas
(ou não) e até que ponto um leitor com pouco conhecimento sobre os usos e
abusos da linguagem se mostra capaz de fazer interpretações coerentes com as
ideias veiculadas no texto, ainda pouco se sabe a respeito. É a partir de
questões como essa que Ilari (2001, p. 104) questiona se podem haver limites
para as possibilidades de associação no momento em que se percebe “a atividade
linguística como uma atividade cooperativa”. O que se pode dizer, com apoio em
estudos realizados, é que tem a possibilidade de detectar com maior facilidade
e precisão as armadilhas persuasivas advindas de elaborações cuidadosas de uso
da língua, aquele que detém maior domínio dos conhecimentos sobre as
estratégias verbais e simbólicas na elaboração dos discursos.
Para Koch (2008, p. 18), um dos problemas
evidenciados no ensino – estudar partes isoladas e não o texto por completo –
advém do cognitivismo clássico em que a mente era concebida como desvinculada
do corpo. Um conceito que só foi superado quando estudiosos insistiram em
comprovar que na mente dos indivíduos as ações são interligadas pela presença
de interlocutores distintos numa inter-relação complexa. É nesse sentido que estão os estudos
de Koch (2009a, p. 31) e Marcuschi (2006, p. 15) quando apontam para a
verificação mais atenta dos modos como os termos da língua são relacionados
para a transmissão dos sentidos. Assim, sugerem que se deve preferir a noção de
referenciação à noção de referência porque o uso de expressões
anafóricas no ato interpretativo consiste em estabelecer ligações para além dos
segmentos linguísticos, com apoio em informações armazenadas na memória
discursiva. Conforme esclarecem esses autores, o sujeito (re)constrói os
objetos-de-discurso pelo modo sociocognitivo com que interage no entorno
físico, social e cultural. Assim, o texto deixa de ser percebido como algo
vinculado apenas na relação entre palavras e coisas e passa a ser visto a
partir das relações complexas (intersubjetivas e sociais) das versões do mundo
que são alteradas continuamente na pretensão de atender aos propósitos
interlocutivos de cada sujeito.
Conforme postula Bakhtin (2003,
p. 312), “a atitude humana é um texto em potencial”, o que possibilita o
raciocínio e, consequentemente, a pesquisa. Em prol do que foi criado se
constitui e, ao perambular pelas vozes do sujeito-leitor, confronta-se com
sentidos diversos nem sempre previsíveis quando acionados no jogo discursivo.
Nessa linha de raciocínio, cada ser humano se constitui por múltiplas vivências
e experiências. Assim, em cada texto produzido se concentra não só a
manifestação individual do autor mas também as interferências (do vínculo
social, do psiquismo, da história, das constatações e seus devidos juízos de
valor) que o constituem enquanto sujeito. O autor-sujeito conscientiza um mundo
ao mesmo tempo em que se relaciona com os objetos da representação por ele
criada. Entretanto, as situações de discurso das personagens e do discurso
idealizado inicialmente podem entrecruzar-se. Esse confronto entre situações de
discurso com suas devidas relações entre os enunciados ou dos enunciados com a
realidade que permeia ou extrapola o ambiente textual é concebido por Bakhtin
(2003, p. 312) como dialógico, pelo entendimento de que é nesse dialogismo que
o sentido é estabelecido.
O fato de que os sujeitos
interagem sociocognitivamente e linguisticamente, se constroem e são
construídos pelas ações textuais é considerado neste estudo que busca ampliar a compreensão da articulação dos mecanismos da
língua em aspectos de referenciação e multimodalidade para apreender o
processamento do sentido nos textos.
Conforme orienta Marcuschi (2012, p. 94), “um texto é uma
proposta de sentido e ele só se completa com a participação do seu
leitor/ouvinte”. Mas autor e leitor, para procederem às ações textuais de
acesso à construção do sentido, devem acionar aspectos linguísticos, sociais e
cognitivos, o que leva Marcuschi (2012, p. 97) a considerar o texto como “uma
atividade sistemática de atualização discursiva da língua na forma de um
gênero”.
Pelas premissas de Koch e Elias
(2010, p. 11), o texto é “uma atividade interativa altamente complexa na
produção de sentidos” e pela organização dos elementos linguísticos são
mobilizados saberes no evento comunicativo (concepção de base sociocognitiva e
interacional). O texto é um evento interativo por conter co-autorias em vários
níveis e ser composto de elementos multifuncionais sob vários aspectos para
comunicar, o que implica em processá-lo levando em conta essa
multifuncionalidade.
Desse modo, sob a lógica da Linguística Textual, numa
perspectiva sociocognitivista, considerando as múltiplas formas
comunicativas, adota-se
neste estudo a noção de texto postulada por Koch (2008, p. 31):
O texto passa a ser visto como o próprio lugar da
interação e os interlocutores como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele
se constroem e por ele são construídos. A produção de linguagem constitui
atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se
realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na
superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer não apenas a
mobilização de um vasto conjunto de saberes, mas, sobretudo, a sua reconstrução
no momento da interação verbal (KOCH, 2008, p. 31).
A esse respeito, Tasso (2006, p.
116) destaca a
necessidade de meios mais eficazes para a constatação das múltiplas realizações
linguísticas verbais e não verbais que se manifestam na textualidade. E afirma
haver na materialidade discursiva dos textos inúmeros mecanismos e estratégias
que envolvem aspectos verbais, visuais e sonoros, cujos “valores simbólicos
intervêm cultural e socialmente na constituição dos sujeitos”, o que
possibilita refletir sobre os modos como estes se encontram nela representados
talvez ao sofrer consequências desses discursos sem a percepção disso.
Martins (1984, p. 32), solicita do leitor maior esforço para
compreender a linguagem e exercitar a memória no enfrentamento de forças
ideológicas que sustentam discursos em processos de direcionamentos de
sentidos. No que concerne ao ato de ler além da escrita, além do gesto mecânico
de decifrar os sinais, é preciso que uma conjunção de fatores pessoais com o
momento, o lugar e as circunstâncias comecem a fazer sentido. A leitura,
portanto, deve ser experienciada como um processo de compreensão de expressões
formais e simbólicas, não importando por meio de que linguagem. Afinal, no
processo interacional, a comunicação não se dá só em palavras faladas e
escritas mas também pela utilização de códigos semióticos.
Para Ferraz (2008, p. 02), “o constante surgimento de avanços
tecnológicos confere às práticas sociais as mais diversas novas configurações
linguísticas, que lançam mão de semioses”. Logo, para ler as mensagens
contemporâneas, é preciso perceber os sentidos implicados nas modalidades
verbais e não verbais. A leitura deve prever os sentidos gerados pela linguagem
verbo-visual, considerada de forma entrosada porque, ao fazer parte de um mesmo
texto, assume relações de sentido que só serão percebidos na análise atenta do
todo.
Entende-se que esse seja um dos desafios desse século:
conseguir lidar com manobras discursivas multimodais relacionadas capazes de
interferir nas formas de produção de sentido com vistas à atuação social do
educando. Importa, portanto, o modo como o professor auxilia o aluno na
percepção das relações entre diferentes linguagens com distintos modos de
representação na construção de um sentido global coerente. Habilidades que vão
desde a capacidade de usar o conhecimento gramatical à percepção das relações
entre palavras para depreender das estruturas textuais atitudes e intenções,
pois só quando são conhecidos mecanismos de leitura variados, as atribuições de
intenções pelo autor são mais perceptíveis.
Para o reconhecimento do implícito em construções textuais
audaciosas e complexas, Koch e Traváglia (2009b, p. 103) sugerem um trabalho
voltado perspectiva textual-interativa, pois o aluno precisa “ser capaz de
interagir com variedades distintas de língua, inclusive a norma chamada culta
que, pelas regras de nossa sociedade e cultura, considera-se a adequada em
determinadas situações”. Vale lembrar que a percepção dos propósitos textuais
depende do repertório em conhecimentos de leitura, pois essa competência é
determinante na apreensão do sentido. Se bem informado, o leitor conta com
maiores chances de perceber os posicionamentos do autor veiculados no texto. Evidencia-se,
assim, a necessidade de uma leitura mais atenta diante das mensagens dotadas de
alguma complexidade.
Koch (2011, p. 157) explica que
representamos a realidade a partir do modo como a percebemos, pelos aspectos
que atribuímos maior relevância, “de tal modo que os textos não apenas tornam o
conhecimento visível, mas, na realidade, sociocognitivamente existente”. Devido
a isso, sentimos necessidade de formas novas e eficientes para representar o
mundo que nos rodeia. O mesmo fenômeno ocorre nos estudos do texto. Em outros
termos, os estudos atuais da Linguística Textual não somente trouxeram algumas
elucidações para os diálogos travados historicamente sobre o texto como também
deram vida a novos questionamentos, também merecedores de atenção.
Geraldi (1984, p. 43) lembra
que é no interior do funcionamento da língua que está a possibilidade do
professor de desvelar ao aluno as manobras discursivas que podem induzi-lo a
ações determinadas. Este deve mostrar ao aluno a existência de diferentes
posicionamentos, equipando-o para que possa adotar a postura que julgar mais
conveniente ao posicionar-se diante dos compromissos criados pelo interlocutor,
lembrando ainda que não é qualquer sentido que pode ser atribuído ao texto.
Os sentidos produzidos na leitura resultam de duas dimensões possíveis:
uma em que a cooperação do leitor se realiza por sua atenção a seus “deveres
fisiológicos”, isto é, de sua tentativa renhida de recuperar com a máxima
aproximação possível as estratégias usadas na produção e, com as pistas que as
revelam, aproximar-se do sentido que lhe previu o autor; ou seguindo a dinâmica
da semiose, ilimitada, produzir infinitos sentidos no contraponto das estratégias de produção e das estratégias de leitura (GERALDI, 2003, p.
110).
Conforme
argumenta Pinheiro (2012, p. 07), sob um ponto de vista sociocognitivo e
interacional, o texto revela-se um fenômeno multifacetado. Sendo assim, “a
análise textual deve
considerar também os múltiplos fatores, cognitivos e discursivos, que entram na
sua constituição e na construção do seu sentido”.
Para
melhores resultados no ensino, a análise empreendida em textos de cunho
multimodal precisa considerar o todo textual verbalizado e visualmente representado.
Deve-se levar em conta na interpretação não só a constituição verbal mas também
os elementos não verbais para, a partir daí, investigar os sentidos que podem
ser autorizados a partir do texto. Mudar o perfil do trabalho com os textos é
necessário numa sociedade em permanente (re)elaboração que faz uso dos
elementos da língua de várias formas possíveis. Assim são os
objetos-de-discurso,
indiciados por pistas linguísticas e completados por inferências variadas, o
que leva a perceber elementos verbais e não verbais como parte de um todo que é
o texto.
O foco, como já dito, é na tira cômica. Segundo
Ramos (2009, p. 02), “este tende a ser um texto tendencialmente curto, com
personagens fixos ou não, que apresenta um desfecho inesperado no final, tal
qual uma piada”. A soma de elementos multimodalizados confere a essa
configuração textual um processamento que se articula de modo relacionado e
obriga a considerar ainda as intenções do falante postas no jogo discursivo.
Algo que pode ser feito pela remissão a elementos compostos por palavras e
imagens que, de forma associada, possuem maior força comunicativa para
persuadir o interlocutor.
Para Ramos (2012, p. 751), a
referenciação pode ser investigada em tiras cômicas a partir da análise das
“informações verbovisuais presentes entre um quadrinho e outro, estabelecendo
entre eles relações de cunho coesivo”, tendo por base o modo como se relacionam
os objetos-de-discurso no processamento textual. O sentido é construído no
gênero multimodal pela sucessão coesa e coerente de enunciados verbalizados e
visuais.
3 O corpus
A tira selecionada tem autoria de ZOPE (2007) e foi retirada
do Blog Resistência, disponibilizado no endereço eletrônico
<http://resistenciabr.wordpress.com/2007/03/02/tira-comica-10/>. Com base
nas teorias explicitadas nas páginas anteriores, segue a análise.
As expressões referenciais usadas verbalmente na tira cômica
para retomar e recategorizar o sintagma nominal “a maioridade penal” ocorrem a
partir da retomada pronominal “isso” em todos os balões de fala. Em cada
momento que o referente é retomado, os sentidos são transmitidos ao leitor de
modo alterado. Em “nada disso”, o sentido é genérico e engloba as
informações “a maioridade penal” e “tolerância zero”. Na sequência, enquanto o
adulto tem como apoio a informação “a maioridade penal”, a criança ampara-se em
“tolerância zero”. A partir daí, em cada balão a retomada pronominal é
recategorizada de modo a não comprometer o entendimento do leitor e ainda
conseguir o efeito humorístico.
A representação visual corrobora para a transmissão das
informações textuais. No primeiro quadrinho, pode-se dizer que o adulto é um
político ou empresário por causa do modo como o personagem é apresentado na
tira: de terno e gravata, com postura de alguém que está em boa situação
financeira e ainda assumindo o papel de um bom sujeito ao fazer agrados em
alguém que não tem tais condições de vida. Num primeiro momento, o olhar do
adulto representa solidariedade a uma causa social (ajuda a quem vive à margem
do sistema social instituído como direito a todo cidadão). Por outro lado, a
criança que num primeiro momento transmite um olhar carente (e até recebe
afago), depois é recategorizada como a vilã que causa medo a pessoas de bem.
Trata-se, então, de uma negociação indireta possibilitada pela mobilização de
esquemas mentais implícitos. Como a relação foi marcada por uma associação mais
complexa de ideias, representa um caso de anáfora não-correferencial indireta
ou associativa baseada em frame.
No caso das retomadas feitas a partir da linguagem verbal,
chamam a atenção os objetos-de-discurso “criança” e “tio” pela recategorização
sofrida. No entanto, esses termos são retomados com a conservação do núcleo de
significação do referente, o que implica em correferência. Seriam casos de
anáfora correferencial com recategorização do referente, mesmo que as retomadas
tenham ocorrido por pronome e de modo elíptico.
Assim, as formas visuais e verbais se complementam nas formas
de retomar e recategorizar (ou não) o referente. No que diz respeito a uma
classificação das anáforas apenas pela constituição dos elementos simbólicos, a
análise parece ficar restrita à categorização e recategorização do referente, à
correferencialidade e não-correferencialidade. Mesmo assim, existe a
possibilidade de análise da referenciação no texto sob a luz dos princípios
teóricos da Linguística Textual. Estão entre os procedimentos usados para a
compreensão da relação entre os elementos fóricos no texto: a) identificação da
presença dos elementos referenciais nos textos; b) classificação das anáforas
identificadas; c) análise dos empregos de anáfora. Essa breve análise não
contempla todos os aspectos que podem ainda ser explorados no texto, como o
caso de alguns sintagmas nominais e pronominais (educação, saúde, oportunidades
na vida, papo legal, grana, eu), dos efeitos de sentido gerados com o uso de
interjeições (“aê” tio) e também o tipo de letra escolhida, as cores, o
tamanho, o plano de fundo do cenário, a arma que aparece no segundo quadro, o
suor no rosto do adulto, as expressões faciais, entre outros aspectos que podem
levar o aluno a ampliar sua capacidade crítica e argumentativa, fazendo-o
compreender melhor o funcionamento dos mecanismos linguísticos e imagéticos nos
textos. Enfim, a tira cômica analisada ancora informações presentes na memória
do leitor que permitem a interpretação do conteúdo transmitido.
Essa constatação corrobora com o que afirma Koch (2011, p.
110): “A interpretação de cada anáfora indireta desencadeia, portanto, um
processo de estabelecimento de relações semânticas ou conceituais”. A abordagem
do tema remete a uma crítica sobre certos políticos que tanto prometem o que
nem sempre têm possibilidade de cumprir enquanto a população aguarda o
cumprimento das promessas feitas numa situação social desfavorável em relação a
eles e convivendo com os problemas sociais ainda a serem resolvidos.
Ao associar os signos verbais com as imagens, percebemos que
a crítica se configura e que é possível compreendê-la porque são acionados os
conhecimentos comuns a respeito da temática. Todavia, se o leitor não possuir
conhecimento do tema explorado na tira cômica, é provável que não consiga
atribuir o sentido real da tira. No exemplo, o locutor pressupõe que o leitor
tenha conhecimento do assunto tratado, podendo, dessa forma, estabelecer
significado.
Especificamente sobre a referenciação, as antecipações feitas
pelo produtor do texto visam o estabelecimento de referentes sujeitos à
aceitação dos interlocutores que reagem às informações transmitidas na tira por
meio da mobilização do seu conhecimento de mundo.
A mescla da linguagem verbal e não verbal mobiliza
conhecimentos inferenciais do leitor e aciona uma leitura não linear (que
mobiliza vários conhecimentos do leitor, por possuir diferentes elementos e linguagens). A compreensão da tira cômica se dá,
portanto, pela associação de diferentes linguagens que são ativadas
(inferências, remissões) e saem de uma leitura linear. Algo que revela a
importância da multimodalidade na constituição de sentido da tira cômica, um
dos gêneros textuais multimodais estáticos.
Cabe lembrar que as possibilidades de análise não foram esgotadas, pois foram
verificadas apenas as retomadas pertinentes para o foco desta pesquisa e sob
determinado ponto de vista. Além disso, a compreensão de produções multimodais
sob o olhar da Linguística Textual é um assunto que ainda está longe de ser
esgotado, pelo contrário, mostra-se como
um campo bastante promissor.
4 Considerações finais
Este estudo que vinculou estratégias de referenciação e
produções multimodais mostrou que é
possível aplicar as teorias da Linguística Textual para compreender textos
formados com elementos verbais escritos e visuais. Apoiada numa perspectiva
sociocognitiva e interacional, a análise considerou a tira cômica em seus
múltiplos aspectos, cognitivos e discursivos, na tentativa de compreendê-la
globalmente. Assim, essa proposta permite refletir sobre o alargamento do
conceito de texto na pretensão de ser útil ao ensino. Por outro lado, enquanto
atividades forem pensadas no sentido de melhorar os resultados no ensino, os
assuntos sobre o texto ficam longe de serem esgotados.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e
Quarto Ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF,
1998.
BAKHTIN, Mikhail.. Estética da Criação Verbal. Introdução e Tradução do Russo Paulo
Bezerra; Prefácio à Edição Francesa Tzvetan Todorov. 4 ed. Coleção Biblioteca
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